(Extraído do livro "Mitos Yorubás: O Outro Lado do Conhecimento" de José Beniste, com adaptações)
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Os Òrìsà e o povo estavam vivendo na Terra criada por Òsàlà, e onde todos exerciam suas tarefas: a caça, a limpeza da terra para a agricultura, a plantação, a construção de suas casas, para abrigo de suas famílias. Tudo era feito com muita dificuldade por falta de ferramentas adequadas para o trabalho e, agora, mais ainda, pois as distâncias aumentavam, a cidade crescia para o lado das montanhas, com seus terrenos desnivelados por gigantescas rochas com caminhos inacessíveis.
Olhando o que tinha feito e o que estava por fazer, os Òrìsà discutiam a melhor solução para o problema. Diziam: "Deixe um de nós começar a tarefa, derrubando as árvores e limpando a terra. Depois poderemos plantar em nossos campos." Todos concordaram, exceto Olókun: "O meu domínio é a água. A terra e as árvores não são meus afazeres."
Òsányìn, o Òrìsà das folhas, disse: "Eu limparei primeiro os campos." E pegou a sua faca do mato, e partiu para as árvores, começando o seu trabalho. Mas a sua faca era feita de madeira e pedra, e, assim, ele não conseguia fazer o corte necessário. Após algum tempo de uso, ela quebrou. Òsányìn retornou e disse para os demais companheiros: "Eu comecei o trabalho, mas a madeira era tão dura que partiu a minha faca."
Òrìsà Oko, senhor dos campos livres, falou: "A minha faca é mais forte, e cortarei as árvores e destruirei as rochas." Em seguida, partiu para o trabalho, mas não conseguiu executá-lo como queria, pois a sua ferramenta não suportou a árdua tarefa. Disse então: "Aconteceu o mesmo comigo, a minha faca está cega e torcida."
Depois, Èsù, com seu corpo potente, armou-se com suas ferramentas e foi para o meio da floresta. Ali permaneceu por longo tempo e, quando retornou, seu semblante estava amarrado: "Eu limpei a terra e desloquei as rochas, mas o metal de minhas armas não é forte o suficiente para tal empreitada." Um por um os Òrìsà tentaram, mas não conseguiam fazer o que pretendiam. "Em que espécie de lugar estamos vivendo? Como poderemos sobreviver aqui?"
Até aquele momento, o único Òrìsà a se manter calado era Ògún, que observava todo o movimento sem nada dizer. Somente quando todos já haviam tentado, ele se levantou de onde estava e disse: "Nísisìyí àsìkò mi ni." ("Agora é a minha vez."). Dizendo isto, partiu para o campo. Executou o corte das árvores necessárias para a abertura dos caminhos; com potentes golpes destruiu as rochas, enquanto outras foram deslocadas para manter a terra livre das pedras. Toda a terra foi arada, amaciada e semeada. Deu novos caminhos, enquanto ia eliminando plantas desnecessárias. Ògún trabalhou até o final da tarde ininterruptamente. Quando terminou a sua obra, retornou para junto dos demais Òrìsà, que já o aguardavam. Lá chegando exibiu suas armas e ferramentas utilizadas. Estavam afiadas e intactas.
Diante do que viam, perguntaram: "Que metal esplêndido é este?" Ògún respondeu: "O segredo desse metal me foi dado por Olódùmarè. É chamado de Irin, o ferro." Os Òrìsà olhavam as ferramentas de Ògún com muita admiração, dizendo: "Se tivéssemos o conhecimento do ferro, nada para nós seria difícil." Ògún observou o interesse de todos, mas relutou em ensinar o seu segredo. "Olódùmarè não me autorizou", disse. Mas não se negou a fazer armas e ferramentas a quem lhe pedisse. Para isso, construiu uma forja em sua casa e passou a fabricar os diversos tipos de armas e instrumentos de trabalho, pois Ògún, além de guerreiro, era um grande caçador. A caça, até aquela época, era efetuada com armadilhas e armas bem leves, além de se contar com muita sorte nas empreitadas.
A relutância de Ògún continuava a incomodar os demais Òrìsà, que, embora estando com as novas armas criadas por Ògún, insistiam em conhecer o segredo de sua fabricação. Pensando no assunto, todos tomaram a iniciativa de dar a Ògún o título de Osìnmalè, o Chefe dentre as Divindades(osìn: chefe; irúnmalè: divindade). Considerando tudo isso, Ògún concordou com o pedido de todos. Passou a ensinar o processo de fazer a liga dos metais, a criação de armadilhas, ferramentas, lanças, espadas e facas.
Em pouco tempo, todos os Òrìsà eram possuidores do conhecimento do uso do ferro. E vieram pessoas de outras regiões para aprender, e Ògún ensinou tudo a todos. Embora Ògún tivesse aceito o cargo de chefia que lhe fora dado por todos os Òrìsà, ele continuava a ser o grande caçador que era, pois muitos dependiam de sua capacidade para sobreviver.E, assim, embrenhava-se floresta adentro a fim de caçar os animais de que tanto gostava. Vestia-se de roupas de couro presas por màrìwò, equipava-se com as armas de luta e seguia seu caminho.
A atividade de caçador era muito árdua, obrigando-o a ficar isolado vários dias, dormindo sobre a terra ou em árvores. Ògún abatia muitos animais, em constantes lutas. Quando saía da floresta, estava sujo, seu cabelo, embaraçado, e as peles que vestia ficavam rasgadas e manchadas do sangue de sua caça. Seguia o caminho de volta à cidade para reencontrar seus companheiros.
Certo dia, os Òrìsà, ao verem Ògún chegando daquele jeito, disseram: "Quem é este estranho todo sujo que vem da floresta? Certamente não é Ògún, o qual indicamos para ser nosso chefe." Eles ficaram descontentes com Ògún e continuaram: "Um chefe deveria se manter com dignidade, suas roupas deveriam ser limpas, e o seu cabelo, bem aparado. Você está indistinguível do mais humilde caçador de Ifè, e o ar à sua volta está empesteado de carne morta." Dizendo isso, concluíram: "O cargo que lhe demos, nós o tiramos agora. Você não é mais o nosso chefe."
Ògún, ouvindo aquilo replicou: "Quando vocês precisaram do segredo do ferro, souberam implorar-me para ser o chefe de todos. Agora que já são possuidores do poder, dizem que eu cheiro mal." Falando isso, Ògún foi até o rio mais próximo, tirou suas roupas sujas de pele de animal e banhou-se. Quando já estava limpo, vestiu suas roupas de màrìwò(folhas de dendezeiro depois de desfiadas mediante um ritual específico), pegou suas armas e partiu para a cidade de Ìré. Construiu uma casa embaixo de uma árvore de akòko, lá permanecendo solitário, mas fiel aos seus compromissos de se manter vigilante nas terras de Ilé Ifè.